O essencial que traz felicidade
Mesmo em fases de economia desaquecida, as vendas no comércio seguem altas. O crédito  fácil e a redução de impostos adotada pelo governo na última crise para estimular as  compras causaram a corrida de consumidores às concessionárias de  veículos e lojas de eletrodomésticos. Mas quem entra numa dívida sem fim para  adquirir um novo carro, precisa mesmo dele? É um produto ou bem  essencial para sua vida?
Em  meio à onda de consumistas impulsivos, porém, há uma parte da população,  embora em minoria, que tem seguido o caminho oposto, abrindo mão do  consumo desenfreado, mesmo tendo alcançado condições financeiras para  isso. São pessoas que adotaram a prática de simplificação da vida e que,  com suas atitudes, trazem à tona a seguinte reflexão: o que você  precisa para ser feliz?
Você vai saber o que leva pessoas a buscarem esse modo  alternativo de vida, trocando o desperdício pelo consumo consciente, o  luxo pelo simples, o “ter” pelo “ser”. Enquanto muitos passam a vida  apenas trabalhando para buscar recursos que são transformados em bens,  que mal são utilizados por falta de tempo, essas pessoas despertaram  para o fato de que o essencial para a felicidade está muito distante do  acúmulo de riquezas.

O  desejo de adquirir bens atinge cada vez mais pessoas e deixou de ser  privilégio das classes mais abastadas. Hoje em dia quase todos têm  sonhos de consumo. Alguns ambicionam uma casa ampla com suítes, piscina e  empregados. Outros um carro importado, aparelhos eletrônicos de última  geração e roupas de grife. Até cidadãos com baixa renda possuem  celulares, eletroeletrônicos diversos, automóveis, mesmo que seja  necessário viver no vermelho ou entrar num longo financiamento que  possibilite a compra desses produtos.  Mas tudo isso é mesmo indispensável para uma vida plena e feliz? 
Indo na direção contrária a essa tendência, há um movimento transformador  que  tem tomado corpo, chamado Simplicidade Voluntária (SV). “Seu objetivo é  proporcionar as condições adequadas para que o indivíduo se liberte da  pressão consumista e da ilusão de felicidade associada ao consumo e  acumulação de bens materiais”, explica Paulo Roberto da Silva, professor  universitário, doutor em ciências contábeis e autor do livro  Consciência e Abundância. Ele trocou a atividade empresarial pela  acadêmica em 1987 para intensificar a prática de simplificação da vida. 
Silva  conheceu o movimento através do livro Simplicidade Voluntária, do  cientista social americano Duane Elgin, e imediatamente se identificou  com o conteúdo. “Foi ótimo saber que mais pessoas no mundo queriam, como  eu, levar uma vida mais leve e interiormente mais rica”. Na verdade, há  raízes históricas de opção pela simplicidade e o professor aponta  grandes personalidades mundiais que poderiam facilmente simbolizar a SV,  como Gandhi, Sócrates, Buddha e até mesmo Jesus Cristo: “Os sábios de  todas as épocas sempre sugeriram que deveríamos atentar para o nosso  sentimento de apego aos bens materiais”.
Exercitando a simplicidade
A  Simplicidade Voluntária ensina que o importante é dispensar nossa  atenção àquilo que é essencial. “Quando temos, consumimos ou desejamos  bens e serviços, parte de nossa atenção é direcionada a eles. Se esses  bens e serviços não são essenciais, nossa atenção é diluída,  dificultando a vivência de um estado de felicidade.” 
E  o que é essencial? “Cada indivíduo deve definir o seu essencial”,  responde Silva, “identificado na medida em que aperfeiçoamos as  respostas para as seguintes questões: Quem sou eu? Preciso do quê para  ser feliz?” Neste sentido, é fundamental o autoconhecimento para se  chegar a uma mudança interior que traga uma nova visão de vida, onde o  “ser” seja mais importante que o “ter”.
Na  economia predominante as necessidades são ilimitadas, lembra Silva.  Mesmo quando se atinge um objetivo, sempre se quer mais. E questiona:  “Como alcançar o estado de felicidade se tudo ao redor estimula para a  insatisfação permanente?” Aí entra o desafio da simplicidade no viver.  Nesta visão diferente de mundo, o importante é não se deixar  influenciar. Exemplificando: não comprar o dispensável só porque está em  promoção ou ainda trocar de carro por um modelo do ano porque seu  vizinho, amigo ou colega de trabalho fez o mesmo. 
O  tempo e atenção não devem ser desperdiçados e sim dispensados para o  que é importante. A energia gasta em busca do objetivo material pode  desviar uma pessoa do convívio com familiares e amigos, do lazer, da  manutenção da saúde, da qualidade de vida, enfim, da real felicidade. “O  que temos de pagar de vida para termos o que queremos?”, questiona  Silva, lembrando que podemos ter o tipo de riqueza que pouco dinheiro  paga. 
Desapego
Optar  pela SV não significa simplesmente viver com menos. “Se assim fosse, a  Etiópia seria o país mais feliz do mundo”, explica o professor. Também  não é se privar do que é importante para você. A orientação de Silva é  buscar “tudo aquilo e só aquilo” que nos aproxima da felicidade. “Menos é  privação e mais é desperdício de atenção com coisas irrelevantes para a  nossa felicidade.” Não é preciso, portanto, abrir mão de todos os seus  bens materiais para simplificar a vida. Não deve ser um sacrifício. 
Silva  conseguiu abandonar o telefone celular há aproximadamente três anos.  Admite, porém, que a maior dificuldade é viver sem um carro, apontado  por ele como um dos maiores problemas sociais e ambientais da  atualidade. “Fui morar num sítio maravilhoso, mas distante 3 km do ponto  de ônibus, fato que tem dificultado bastante o início da experiência.  Tenho prestado bastante atenção nessa questão e suspeito que conseguirei  me libertar do carro em breve e viver melhor.”
Ele  conta ter encontrado o modelo de bicicleta que atenderá as suas  necessidades, além de estudar alternativas para aproximar suas  atividades para as redondezas da casa onde mora. “Só considero uma  mudança ‘necessária’ se ela tornar minha vida exteriormente mais simples  e interiormente mais rica. Além disso, posso voltar atrás, caso a  experiência não produza os efeitos esperados. A simplicidade precisa ser  ‘voluntária’, inclusive no sentido psicológico”. 
A  opção pela SV é mais fácil quando individual, mas perfeitamente  possível em família. “Considero esse processo um desafio muito  estimulante de autoconhecimento e amadurecimento das relações  familiares”, diz Silva, recordando que já viu crianças surpreendendo  pais, sugerindo mudanças interessantíssimas para simplificar a vida da  família. “As pessoas são diferentes e viver bem é um conceito subjetivo.  Suponho que a palavra-chave é ‘respeito’ pelas diferenças”.
Estilo de vida
O  terapeuta corporal Jorge Mello considera a Simplicidade Voluntária mais  um estilo de vida do que um movimento. Mello é referência sobre o tema  no Brasil. Estuda e pratica a SV há muitos anos. “Conheci a visão da  Simplicidade Voluntária na década de 80, através dos escritos de Gandhi (Mahatma Gandhi, pacifista indiano), Thoreau (Henry Thoreau, defensor do conceito de desobediência civil) e E. F. Schumacher (economista alemão, autor de ‘The Small is Beautiful’ ).” Experimentou no cotidiano da Ecovila de Findhorn, na Escócia, a aplicabilidade dessas idéias e em 2003 fez o curso Simplicidade e Mudança Social no Schumacher College, faculdade britânica de ecologia e ciências holísticas, voltada para o desenvolvimento sustentável.
Jorge  Mello vê “uma progressão notável” da difusão da SV no Brasil e no  mundo: “Temos na Europa e nos Estados Unidos um crescente e pouco  noticiado interesse pelo consumo consciente, pela revisão do modo de  utilizar o tempo, pelas ações redutoras da emissão de CO2  (dióxido de carbono) e pouco a pouco também ganham espaço algumas idéias como a Slow Life (vida calma, em tradução literal), em suas muitas possibilidades, e a Felicidade Interna Bruta (FIB),  como indicador alternativo ao PIB, Produto Interno Bruto”. Foz do  Iguaçu, no Paraná, sediou a 5ª Conferência Internacional  sobre a FIB, um cálculo que considera outros aspectos além do  desenvolvimento econômico, como a conservação do meio ambiente e a  qualidade da vida das pessoas.
Não  há levantamento oficial sobre o número de adeptos da Simplicidade  Voluntária no país. Segundo Mello, isso porque “(a SV) é um metaconceito  bem amplo, que abarca desde consumir com consciência e moderação até  optar por assistir menos televisão”. Mas ele acredita que há milhares de  pessoas optando por viver de maneira mais simples em São Paulo e um  número muito expressivo em todo o Brasil. Nos Estados Unidos, informa,  há estimativas que apontam para um percentual de 10% da população que  adota práticas de viver com mais simplicidade, o que indicaria,  aproximadamente, 20 milhões de pessoas.
Viver  a simplicidade só traz benefícios. “Como um estilo de vida mais frugal  nos concede a possibilidade de dispormos de mais tempo e energia para os  aspectos existenciais, naturalmente poderemos desfrutar de mais poder,  liberdade e qualidade de vida, no sentido mais amplo do termo”, constata  Mello, lembrando que “as práticas do viver simples beneficiam, ao mesmo  tempo, sua saúde, seu bolso e o ambiente natural”.
Jorge  Mello explica que a Simplicidade Voluntária pode restituir-nos o poder  de fazer opções com maior lucidez e de viver de forma mais consciente.  “Embora pareça ser algo trivial, ainda assim isso é muito raro em nossos  dias”, finaliza.
Luciana de Melo
Instituto Bem Simples: www.simplicidade.net
Simplicidade Voluntária, Editora Cultrix, de Duane Elgin.
Consciência e Abundância, de Paulo Roberto da Silva. 
Contatos pelo e-mail: conscienciaeabundancia@yahoo.com.br
